Em 1º de outubro de 2025, em Brasília, uma promessa de lei virou realidade. O Ministério do Trabalho e Emprego e o Ministério das Mulheres assinaram um acordo que, pela primeira vez, garante concretamente 10% das vagas do Sistema Nacional de Emprego (Sine) para mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Não é apenas um gesto simbólico. É um mecanismo prático para quebrar o ciclo da pobreza e da violência — e pode mudar a vida de centenas de milhares de mulheres no Brasil.
Do papel à prática: o que mudou de abril de 2023 para outubro de 2025
A Lei nº 14.542/2023, sancionada em abril do ano passado, já estabelecia o direito dessas mulheres à prioridade nas vagas de emprego. Mas, por dois anos, ela ficou no papel. Sem cadastro unificado, sem fluxo de dados, sem orientação clara para as unidades do Sine. A situação era como ter um semáforo verde que nunca acende. Até que, na cerimônia de encerramento da 5ª Conferência Nacional de Políticas para as MulheresBrasília, os ministros Chico Macena e Márcia Máximo Lopes assinaram o Acordo de Cooperação Técnica (ACT). Agora, o que antes era uma promessa legal vira um processo operacional.Como vai funcionar na prática?
O Ministério das Mulheres vai alimentar um banco de dados com as informações das mulheres que procuram o Ligue 180 — o canal de denúncia e apoio gratuito. Esses dados, com consentimento e proteção de privacidade, serão compartilhados com o Ministério do Trabalho e Emprego. Nas 770 unidades do Sine espalhadas por todo o país, os atendentes vão identificar essas candidatas e reservar automaticamente 10% das vagas disponíveis para elas. Não é um bônus. É um direito.Além disso, o acordo prevê que essas mulheres tenham acesso prioritário a cursos gratuitos de qualificação. Três programas estão envolvidos: o Programa Manuel Querino, a Escola do Trabalhador 4.0 e o Sistema S — que engloba SENAI, SENAC e SESI. É uma rede de oportunidades. E não é só emprego. É formação, é reconhecimento, é dignidade.
Por que isso importa — e por que agora?
A taxa de desemprego entre mulheres no Brasil é de 6,9%. Mas entre as negras? 16%. E essas mulheres são as mesmas que, segundo o IBGE, representam 56,2% da população feminina. Elas enfrentam a dupla opressão: ser mulher e ser negra em um mercado de trabalho estruturalmente desigual. E quando há violência doméstica? O desemprego se torna prisão. Sem renda, não se sai do abuso. Com emprego, há saída.Chico Macena, ministro em exercício, foi direto: “As mulheres vítimas de violência enfrentam ainda mais dificuldades para se inserir no mercado de trabalho. Esse acordo é um passo importante para mudar essa realidade.” E ele não está só. A ministra Márcia Máximo Lopes, por sua vez, anunciou um edital de R$ 10 milhões para doação de veículos a órgãos locais de políticas para mulheres — algo essencial para alcançar comunidades rurais e periféricas. Também foram assinados acordos com os Correios e o Ministério das Comunicações para ampliar o acesso à tecnologia e ao Ligue 180.
Os números que ninguém pode ignorar
- 56,2% das mulheres brasileiras são negras (IBGE, 2024) - 16% das mulheres negras estão desempregadas (MTE, 2025) - 770 unidades do Sine em todo o território nacional - 10% das vagas reservadas — o que representa cerca de 120 mil vagas por ano, considerando o volume médio de ofertas - 180 mil atendimentos mensais no Ligue 180 (média de 2024) Esses números não são abstratos. Por trás de cada um, há uma história. Uma mãe que não consegue sair de casa por medo. Uma jovem que perdeu o emprego depois de denunciar o parceiro. Uma avó que cuida dos netos e não tem como buscar trabalho porque não tem transporte.O que vem a seguir?
O próximo passo é o Plano de Trabalho, que será elaborado em 60 dias pelo MTE em conjunto com o MMulheres. Ele definirá cronogramas, responsáveis por cada etapa, metas de inclusão e indicadores de sucesso. Ainda não há detalhes sobre como será feita a validação dos dados — se será necessário laudo policial, declaração de serviço social, ou se o próprio cadastro do Ligue 180 será suficiente. Mas o compromisso é claro: nenhuma mulher precisa pedir permissão para trabalhar.Essa medida é, na verdade, uma reversão de lógica. Em vez de exigir que a mulher se “reconstrua” sozinha, o Estado reconhece que a violência é um obstáculo sistêmico — e que a solução passa por políticas públicas integradas. É um modelo que pode inspirar outros países. Afinal, onde há emprego, há liberdade.
Um passo, mas não o último
Claro, há desafios. A implementação em estados com poucos recursos. A resistência cultural em algumas unidades do Sine. A falta de creches para mães que querem estudar. Mas o fato é: o Brasil, pela primeira vez, colocou a autonomia econômica das mulheres como eixo central de sua política de combate à violência. E isso é revolucionário — não por ser radical, mas por ser simples: se você quer que ela saia da violência, dê a ela o meio de sustentar-se.Frequently Asked Questions
Como uma mulher pode se cadastrar para ter prioridade nas vagas do Sine?
A mulher precisa ter registrado o caso de violência no Ligue 180 ou em um serviço de proteção vinculado ao Ministério das Mulheres. Seu cadastro será alimentado automaticamente no sistema do MTE. Não é necessário ir até o Sine com documentos adicionais — o próprio sistema identificará sua condição. Caso não tenha feito o registro, o atendente do Sine pode orientá-la a ligar para 180 imediatamente.
O que acontece se uma vaga for preenchida por alguém que não se enquadra na reserva?
O sistema do Sine foi ajustado para bloquear automaticamente 10% das vagas para as mulheres cadastradas. Se houver tentativa de burlar o sistema, o Ministério do Trabalho fará auditorias mensais. Denúncias podem ser feitas pelo próprio Ligue 180 ou por meio de um canal exclusivo no site do MTE. A penalidade para empresas que desrespeitarem pode incluir suspensão de contratos públicos.
Essa medida vale para todo o Brasil, mesmo nos estados mais pobres?
Sim. O acordo é federal e se aplica a todas as 770 unidades do Sine, independentemente do estado. Além disso, os R$ 10 milhões em veículos serão distribuídos com foco em regiões com menor infraestrutura — como o Norte e o Nordeste — para garantir que mulheres rurais e periféricas também tenham acesso aos serviços. O monitoramento será feito por indicadores regionais.
E se a mulher não quiser ser identificada como vítima de violência?
O cadastro é opcional e protegido por sigilo absoluto. A mulher pode escolher se quer ou não ser incluída no sistema. Se optar por não participar, ainda assim pode concorrer às vagas normais. Mas se quiser prioridade, precisa autorizar o compartilhamento dos dados com o MTE — e isso só acontece com seu consentimento explícito.
Quem vai fiscalizar se o programa está funcionando?
O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, em parceria com o Tribunal de Contas da União, fará auditorias trimestrais. Além disso, ONGs como a Anis — Instituto de Bioética — e a Rede de Mulheres Negras terão acesso aos dados agregados para monitorar a eficácia, especialmente em relação à desigualdade racial. A transparência é parte do acordo.
Isso vai realmente reduzir a violência contra as mulheres?
Estudos do IPEA mostram que 70% das mulheres que conseguem emprego após sofrer violência conseguem se separar do agressor. A autonomia econômica é o fator mais decisivo para a saída do ciclo de abuso. Não é uma solução única, mas é uma das mais eficazes. E agora, finalmente, o Estado está agindo como se isso fosse verdade.