setembro 12

O caso que escancara uma brecha legal a 10 mil metros de altura

Uma regra técnica, escondida no meio de leis de aviação, virou um muro para Kelly, 24 anos. Em setembro de 2024, durante um voo da Qatar Airways de Doha a Londres, ela sofreu abuso sexual. O agressor, segundo a própria Kelly, foi condenado. Mas quando ela recorreu ao programa estatal britânico que indeniza vítimas de crimes violentos, veio a negativa: o crime não aconteceu em um “local relevante” para o Reino Unido. A razão? O avião tinha registro do Qatar.

Kelly procurou o Criminal Injuries Compensation Scheme (CICS), administrado pela Criminal Injuries Compensation Authority (CICA), órgão ligado ao Ministério da Justiça. O CICS é um fundo público que paga valores fixos a quem fica com danos físicos ou psicológicos por causa de crimes violentos. Casos de violência sexual estão previstos nas tabelas do programa, com faixas de compensação conforme a gravidade e o impacto na saúde mental.

A solicitação foi enviada em abril. A resposta, porém, não discutiu a dor, o trauma ou a necessidade de terapia. O foco foi a jurisdição. O CICS afirmou que, pela regra vigente, um crime em aeronave só entra no escopo do programa se o avião estiver registrado no Reino Unido. O entendimento se baseia no Section 92 do Civil Aviation Act 1982, que trata de quando um avião é considerado “britânico” para fins legais. No caso de Kelly, a matrícula era do Qatar. Resultado: indeferimento.

Ela recorreu em maio. A resposta repetiu o mesmo fundamento jurídico e manteve a negativa. “Eu entendo que ele foi condenado, fez o que fez e está pagando por isso. Mas e eu? Não tenho como bancar certas terapias”, disse Kelly. O relato resume o impasse: a lei reconhece o crime, mas o esquema de compensação fecha a porta porque a aeronave não era britânica.

Essa brecha revela um ponto cego do sistema de apoio a vítimas. Em rotas internacionais, a jurisdição frequentemente acompanha a matrícula do avião — uma espécie de “bandeira” no céu. Fora do espaço aéreo nacional, e até dentro dele em alguns cenários, o país de registro ganha peso. Na prática, passageiros de diversas nacionalidades podem acabar sem acesso a fundos de indenização onde vivem, mesmo quando o processo criminal ocorre ali, como em Heathrow, Londres.

O CICS foi desenhado para cobrir crimes violentos ocorridos na Grã-Bretanha e, em situações específicas, atos de terrorismo no exterior com vítimas britânicas. Ele não é um seguro universal para incidentes fora do território — e a exceção para aeronaves depende da matrícula. É um recorte pensado para dar previsibilidade jurídica, mas que, em casos como o de Kelly, soa como um detalhe burocrático que atropela a realidade da vítima.

Há outro ponto sensível: o programa existe para aliviar custos de tratamento e compensar o sofrimento, não para substituir um processo civil ou punir o agressor. Em violência sexual, o impacto psicológico costuma ser forte e prolongado. Kelly conta que segue em atendimento, mas enfrenta barreiras financeiras. “Só quero ser compensada pelo que passei. Quero ajuda profissional e ser ouvida”, desabafa.

No setor aéreo, tripulações são treinadas para lidar com denúncias de assédio e agressão: separar passageiro e suspeito, mudar assentos, preservar provas e acionar a polícia no pouso. Em muitos casos, as prisões acontecem assim que a aeronave estaciona. Mas, quando chega a hora do suporte financeiro via Estado, o caminho fica mais estreito — principalmente em voos operados por companhias com matrículas estrangeiras, mesmo em rotas para o Reino Unido.

A lei de aviação e os acordos internacionais (como a Convenção de Chicago, que confere ao Estado de matrícula autoridade sobre a aeronave) explicam por que a decisão do CICS seguiu essa linha. Só que, para a vítima, o efeito é simples: a porta principal para custear terapia e reabilitação ficou fechada. E abrir as alternativas não é tão direto quanto parece.

O que vem agora: caminhos possíveis, limites e propostas de mudança

Sem a compensação do CICS, que outros caminhos existem? Há alguns, cada um com seus limites. O primeiro é uma ação civil contra o agressor. Em teoria, a vítima pode processar a pessoa responsável para buscar danos morais e materiais. Na prática, isso depende da capacidade financeira do condenado — e processos civis podem ser longos e caros.

Outra rota seria acionar a companhia aérea. Mas a legislação internacional que regula a responsabilidade do transportador, como a Convenção de Montreal, foi pensada para acidentes e lesões ligadas à operação do voo, não para crimes intencionais de terceiros. Tribunais em diferentes países têm sido reticentes em responsabilizar companhias por agressões cometidas por passageiros, a menos que se prove falha clara de dever de cuidado ou omissão da tripulação. Sem esse nexo, a chance de êxito cai.

Há ainda a possibilidade de buscar reparação no país de registro da aeronave — no caso, o Qatar. Só que isso implica entender outra legislação, contratar advogado local e encarar custos e barreiras culturais e processuais. Em termos de acessibilidade para a vítima, costuma ser o caminho mais difícil.

No Reino Unido, um movimento razoável pode ser pedir uma revisão judicial (judicial review) da decisão administrativa, questionando a interpretação aplicada pelo CICS. Não é um novo julgamento dos fatos, mas uma análise sobre legalidade e razoabilidade do ato administrativo. Mesmo assim, sem mudança legislativa, as chances de virar o jogo só pela via interpretativa são limitadas.

Também existe a rede pública de saúde. O NHS oferece terapia gratuita por meio de serviços como Talking Therapies e centros especializados para vítimas de violência sexual, com planos de tratamento para TEPT, ansiedade e depressão. O problema é o tempo de espera e a necessidade de terapias complementares, às vezes fora do escopo do NHS. É aí que a compensação financeira faria diferença, cobrindo lacunas e acelerando o cuidado.

Do lado do governo, há espaço para ajustes. Um caminho seria atualizar o regulamento do CICS para incluir, expressamente, crimes cometidos em aeronaves estrangeiras quando o voo parte ou chega ao Reino Unido, ou quando a investigação e o processo ocorrerem sob jurisdição britânica. Outra alternativa é criar um mecanismo de “última instância” para vítimas residentes no Reino Unido, quando não houver via razoável de compensação no país de registro da aeronave.

Também se fala em acordos de reciprocidade: se o Estado A compensa vítimas em aeronaves do Estado B em determinadas condições, o Estado B faz o mesmo para cidadãos do Estado A. Isso exigiria negociação diplomática, mas reduziria o vazio que hoje aparece em rotas internacionais operadas por grandes companhias de países fora da Europa.

Enquanto a legislação não muda, orientação jurídica clara faz diferença. Vítimas e famílias precisam saber, cedo, quais documentos guardar, como obter laudos, e em que prazo apresentar pedidos ao CICS e a outras instâncias. Em casos de violência sexual, relatórios médicos e psicológicos detalhados ajudam a comprovar o impacto. A própria CICA trabalha com prazos rígidos e exigências formais — perder uma janela de requerimento por falta de informação agrava a sensação de abandono.

O caso de Kelly também reabre o debate sobre dados e prevenção. Companhias aéreas e autoridades podem padronizar protocolos de prevenção e resposta, além de campanhas discretas a bordo explicando como pedir ajuda. Cartões de assento com instruções simples, códigos de solicitação de auxílio e treinamento contínuo de tripulação são medidas de baixo custo com alto potencial de impacto. Passa também por sinalizar, de forma clara, que a denúncia será acolhida e que a polícia estará pronta no desembarque.

Do ponto de vista jurídico, a regra atual faz sentido dentro do tabuleiro da aviação internacional. Do ponto de vista humano, ela falha quando coloca o registro da aeronave acima do trauma da pessoa. Esse é o desconforto que Kelly expõe quando diz: “Quero ajuda profissional e quero ser ouvida”. Ela está no meio de duas verdades: a do sistema, que precisa de fronteiras claras, e a da vida real, em que o sofrimento não cabe em nota de rodapé do Civil Aviation Act.

Há precedentes de reformas legais quando a prática mostra que o desenho original deixou gente de fora. O Reino Unido já ajustou o CICS ao longo dos anos para ampliar ou esclarecer coberturas. A brecha das aeronaves estrangeiras em rotas britânicas parece pronta para entrar nessa lista de correções. Se isso vai acontecer, depende de pressão pública, de debates no Parlamento e de vontade do Ministério da Justiça em rever as definições de “local relevante”.

Por ora, Kelly segue no circuito de recursos e tratamentos. A condenação do agressor não resolveu a conta emocional — e tampouco pagou a terapia. Na ausência de uma solução rápida, organizações de apoio a vítimas de violência sexual, serviços do NHS e aconselhamento jurídico gratuito podem aliviar parte do peso. Mas a pergunta que fica é direta: num voo para Londres, com prisão em solo britânico e processo nos tribunais locais, faz sentido negar compensação porque a matrícula no casco do avião era de outro país?

Se a resposta pública for “não”, a mudança técnica vem depois. E, com ela, um recado simples para quem sofreu abuso sexual em voo: a bandeira pintada na fuselagem não pode valer mais do que a dignidade de quem estava sentado no assento ao lado.

Vanessa Kuśmierska

Sou jornalista especializada em notícias e adoro escrever sobre assuntos relacionados ao cotidiano brasileiro. Gosto de manter meus leitores informados sobre os eventos atuais e importantes. Escrever é minha paixão e compartilhar informações relevantes faz parte do meu trabalho diário.

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